Privatizações e Concessões: uma análise objetiva sobre a saúde pública brasileira.

Clube Caiapós
5 min readOct 30, 2020

--

O revogado Decreto Nº 10.530, editado e publicado em 26/10/2020 e já revogado em 28/10/2020 pelo Decreto Nº 10.533, foi responsável por levantar intensa polêmica no Brasil. No referido ato normativo se determinava, no Art. 1º, a “elaboração de estudos de alternativas de parcerias com a iniciativa privada para a construção, a modernização e a operação de Unidades Básicas de Saúde dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios”.

A partir dessa redação, se instaurou um amplo debate nas redes sociais sobre qual seria o significado, em termos práticos, do decreto. Discutiu-se, inclusive, que o referido dispositivo representaria um pontapé inicial para a privatização do Sistema Único de Saúde, ou para o sucateamento deste. Entretanto, entendemos que a verdade não está aí, e que houve uma certa confusão conceitual, e por isso é tão importante delimitarmos muito bem as diferenças entre privatização, concessão e a instalação de parcerias público-privadas.

A privatização pode ser entendida como a venda de órgãos ou empresas estatais para a iniciativa privada, que passa então a ter controle definitivo sobre o objeto privatizado. Privatizações não são tão simples de serem feitas como muitos pensam, geralmente demandando procedimentos jurídicos complexos e demorados. Prova disso é que o Supremo Tribunal Federal entende que a Constituição Federal de 1988 veda a privatização das matrizes de empresas públicas sem o aval do Congresso Nacional, por meio de lei. Desse modo, a privatização é um instrumento de maior complexidade, e que está fora da mera determinação do Poder Executivo.

A concessão, por outro lado, é a transferência temporária da prestação de serviço público à iniciativa privada. É importante perceber que na concessão, diferentemente do que acontece na privatização, o Estado continua sendo o titular do órgão ou empresa, sendo que apenas a prestação do serviço é transferido ao ente privado. Envolvem um contrato de investimento, em que agentes privados investem em entes públicos, tornando viável certos serviços públicos, enquanto são remunerados por isso.

Há várias modalidades de concessão. Dentre elas, há a Parceria Público-Privada (PPP), que é a espécie mencionada no decreto alvo das discussões. Esta é uma espécie de concessão, na qual o parceiro privado presta determinado serviço público, mediante um financiamento público. Há ainda dois tipos de PPPs, aquelas que possuem concessão administrativa e aquelas que possuem concessão patrocinada.

Se estivermos falando de uma PPP em concessão administrativa, por exemplo, o ente privado não recebe autorização para cobrar nenhuma tarifa dos usuários do serviço, sendo este financiado pelo próprio Estado. Neste caso, apenas o que passa para o ente privado é a gestão do serviço, e não o custeio. A concessão patrocinada é diferente, e permite que o ente privado aplique, mediante alguns critérios, tarifas aos usuários, e o Estado apenas complementa os valores recolhidos.

Ou seja, o Decreto permitia apenas a possibilidade de se estudar a implantação de PPPs, de qualquer modalidade, ou concessões de outro tipo, na construção e gestão das Unidades Básicas de Saúde. Não se trata, como aventado, de projeto de privatização do SUS, mas de uma prática que, aliás, já é recorrente no modelo atual. Provas comuns e numerosas são as Santas Casas de Misericórdia: entidades privadas sem fins lucrativos que são responsáveis por 54% dos atendimentos públicos no Brasil.

Na verdade, a maior parte das entidades filantrópicas de titularidade privada atendem pelo SUS. Segundo dados da Confederação das Santas Casas e Hospitais Filantrópicos, dos 2.172 hospitais sem fins lucrativos que a CMB representa, 1.704 atendem pelo sistema público. Muitos deles, aliás, possuem também programas de convênios privados, a partir dos quais destinam os lucros aferidos para a manutenção e o custeio dos atendimentos públicos, dada a defasagem da tabela de repasses do Ministério da Saúde. Defasagem, aliás, que configura realidade de longo prazo no Brasil. Há também muitos hospitais privados com fins lucrativos que, nada obstante, também atendem pelo SUS, e recebem remuneração do Ministério da Saúde pelo serviço prestado.

Assim sendo, a presença da iniciativa privada na prestação de serviço público de natureza de saúde não é novidade alguma. E apresenta vantagens notáveis, como a melhor qualidade dos serviços e instalações decorrente da gestão de administradores privados, além da maior eficiência na administração de recursos públicos. Como se pode ver, por exemplo, a partir da Clínica de Atendimento à Familia, em Jundiaí, que há alguns anos conta com um grande projeto de parceria entre a iniciativa pública e a privada, e em 2019 recebeu o prêmio Inovacidade, na SmartCity Business Brazil.

É por esses motivos que entendemos que o decreto era, de fato, muito importante para o próprio sistema de saúde e para a concretização da universalização da saúde para todos. Segundo dados do governo federal, há atualmente, no Brasil, mais de 4.000 Unidades Básicas de Saúde e 168 Unidades de Pronto Atendimento fora de funcionamento por não estarem acabadas. Estabelecer parcerias com a iniciativa privada para construir e equipar essas unidades, bem como para fazer sua gestão em modelo de concessão, poderia trazer resultados muito benéficos. Como sempre fazemos questão de pontuar, o Estado é cronicamente ineficiente do ponto de vista econômico, e é nesse contexto que a iniciativa privada pode contribuir e muito, ainda que em caráter subsidiário como no caso das concessões.

Destarte, é por acontecimentos assim que uma análise cautelosa dos fatos é tão importante e essencial para a sociedade. Olhar para o mundo real, buscar dados e conceitos precisos na linguagem técnica, pautar-se em notícias verdadeiras, são algumas das condições mais básicas e fundamentais para um debate profundo, proveitoso e de qualidade. E essas condições tornam-se ainda mais importantes quando, do debate, irão resultar políticas públicas que afetarão a vida de milhões de pessoas. Neste sentido, discursos apressados e apaixonados em defesa de um posicionamento pouco ajudam, se não for feita uma observação cuidadosa e racional da realidade que nos cerca. Não fazê-lo é assumir o risco de trazer sérias consequências negativas para todos. E já diria Ayn Rand: “Você pode ignorar a realidade, mas não pode ignorar as consequências de ignorar a realidade”.

Por Lucas de Carvalho Franco

Referências:

Celso Antônio Bandeira de Mello. Curso de Direito Administrativo, 32ª edição, 2014, São Paulo: Malheiros.

Felippe Hermes. O SUS está sendo ameaçado, mas não do jeito que você imagina. Publicado em 07 ago. 2020. Disponível em https://www.infomoney.com.br/colunistas/felippe-hermes/o-sus-esta-sendo-ameacado-mas-nao-do-jeito-que-voce-imagina/

Prefeitura de Jundiaí. Clínica da Família de Jundiaí é único em Atenção Básica a levar prêmio nacional. Publicado em 22 jul. 2019. Disponível em https://jundiai.sp.gov.br/noticias/2019/07/22/clinica-da-familia-de-jundiai-e-unico-em-atencao-basica-a-levar-premio-nacional/

Confederação das Santas Casas e Hospitais Filantrópicos. Institucional: Quem somos? Acesso em 29 out. 2020. Disponível em https://www.cmb.org.br/cmb/index.php/institucional/quem-somos

Incluir UBS em programa de privatizações foi pedido da Saúde, diz Economia. Economia Uol. Publicado em 28 out. 2020. Disponível em https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2020/10/28/incluir-ubs-em-programa-de-privatizacoes-foi-pedido-da-saude-diz-economia.htm?cmpid=copiaecolahttps://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2020/10/28/incluir-ubs-em-programa-de-privatizacoes-foi-pedido-da-saude-diz-economia.htm

--

--

Clube Caiapós
Clube Caiapós

Written by Clube Caiapós

Grupo de Cultura e Extensão da FEA-RP/USP voltado ao estudo e promoção das ideias do liberalismo na Academia.

No responses yet