Distopia contemporânea:

Clube Caiapós
9 min readMar 29, 2021

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A cultura do cancelamento

“A cultura do cancelamento está enraizada numa característica do ser humano. O ser humano gosta de jogar pedra nos outros. Ele gosta porque, nesse momento, é quase como se ele sentisse que é puro(…) Eu tenho a impressão de que a cultura do cancelamento é a transposição do gosto do linchamento para o âmbito das redes sociais e traz a ideia de que quem lincha está linchando em nome de uma boa causa”, resumiu brilhantemente Luiz Felipe Pondé em vídeo postado em seu canal no YouTube. E é sobre a cultura do linchamento que iremos tratar neste artigo.

Antes de falar sobre a cultura do cancelamento, é importante entendermos sua origem, que está completamente interligada com a noção de politicamente correto. A sabedoria popular, e nesse sentido quase poder-se-ia dizer de forma milenar, nos ensina que se uma pessoa diz algo sobre outra e ambas riem, é uma piada; se apenas uma ri, é zombaria, e pode ser completamente constrangedora e humilhante para quem sofre a piada. Essa é uma lição clássica de educação doméstica, que certamente a maioria de nós já ouviu, em algum momento da vida, do pai, da mãe, de algum professor, etc.

Coisa diversa é o politicamente correto. Uma coisa é educação doméstica: é ensinar a uma criança que fazer piadas maldosas e degradantes com o colega é um comportamento ruim — isso é pura urbanidade, civilidade. O politicamente correto é, novamente na visão do Prof. Luiz Felipe Pondé, uma tentativa deturpada de educação social que se pretende protetora dos fracos e oprimidos mas que, no frigir dos ovos, termina em censura, constrangimento e limitação do pensamento livre — ou seja, a cultura do cancelamento, que nos parece o problema central, na verdade é apenas o sintoma ou o instrumento pelo qual se manifesta algo pior, que é sua verdadeira causa.

Se olharmos atentamente, e nesse sentido é interessante a ressalva feita pelo Prof. Mário Sérgio Cortella, na verdade o politicamente correto possui uma ascendência histórica bastante plausível: nasce a partir de uma necessidade concreta, que é a de ordenar a convivência entre pessoas que no passado não conviviam. Peguemos o exemplo dos Estados Unidos: um país que por muito tempo se viu manchado pela horrenda Lei do Apartheid, que excluía negros da convivência de brancos e vice-versa. Após o (louvável) fim dessa política absurda, negros e brancos passaram a ocupar os mesmos espaços, como restaurantes, escolas, locais de trabalho, etc.

Grupos sociais que até então estavam separados uns dos outros passaram a ter que conviver. E a convivência traz consigo uma necessidade de respeito e de urbanidade que não é necessária quando você vive sozinho (já nos demonstrou Robinson Crusoé). E essa necessidade de ordenação da convivência social gerou um padrão de comportamento socialmente adequado segundo o qual “piadas” pejorativas com negros (que sempre foram erradas em si mesmas, é claro), tornaram-se socialmente indesejáveis. Esse é apenas um dos vários exemplos que poderíamos citar para demonstrar que a raiz histórica do politicamente correto não é nada muito diferente da boa e velha educação e empatia de que tanto nossos pais falavam.

Porém, esse padrão de comportamento, que olhando dessa perspectiva parece apenas um bichinho bem fofo, cresceu e tornou-se um monstro perigosíssimo. Já há alguns anos, o politicamente correto tornou-se uma espécie de mantra sagrado usado por aquilo que Pondé denomina como “a geração do mimimi”: um novo padrão de comportamento social, segundo o qual todos estão hipersensíveis, e qualquer comentário, banal que seja, é imediatamente execrado por alguns grupos — os defensores do politicamente correto.

Não se trata mais de urbanidade, e sim de dominação: todos que falam, curvem-se à soberania dos oprimidos, que com tudo se ofendem. É claro que não estamos falando aqui de falas de teor claramente ofensivo, essas merecem obviamente uma resposta enérgica e rápida (ainda que proporcional e justa, mas isso vamos trabalhar mais pra frente). Referimo-nos a comportamentos tomados sem nenhuma intenção de ofender, mas que acabam gerando perturbações imensas na geração mimimi.

Pondé demonstra a “ofensividade” da geração mimimi com maestria em artigo publicado pela Folha de São Paulo, chamado “Sociologia do Mimimi”: um jovem dá lugar a uma moça no metrô e de repente se vê indagado por outro homem sobre o porquê de seu ato, se ele acreditava que a moça merecia mais descanso numa sociedade de direitos iguais entre homens e mulheres; e logo depois, se vê indagado por uma outra moça, que alega que ele era um opressor das mulheres, e que além de enganar a moça para quem cedeu o lugar com sua falsa bondade, apenas estava zombando dela ao lhe dar um pequeno consolo por aceitar tamanha opressão — e coitada da moça, que estava sentadinha calada no seu novo lugar, e já arrependida de tê-lo aceitado, pois agora tinha que aguentar aquela dor de cabeça; estava melhor quando só lhe doíam as pernas.

E agora que a raiz do problema está devidamente posta, vamos ao sintoma: a cultura do cancelamento. Essa cultura, é claro, é filha do promíscuo encontro entre a geração mimimi e as redes sociais (especialmente aquela velha conhecida do pássaro azul, tão simpática e amena quanto Sauron, do Senhor dos Anéis), cujo alcance pouco limitado permite que uma minoria barulhenta se torna ainda mais barulhenta.

E aqui está a grande chave para entender o fenômeno: como diria Zygmunt Bauman, a sociedade moderna vive uma liquidez esquizofrênica, na qual o indivíduo crê firmemente que os outros estão numa conspiração constante contra ele. Homens “conspiram” contra mulheres, brancos contra negros, héteros contra homos, cis contra trans, uma guerra de todos contra todos que arrepiaria até os cabelos de Hobbes. E num cenário onde todos te odeiam e conspiram pra te destruir, só há uma forma de sobreviver: atacar primeiro, destruir primeiro.

É esse, por assim dizer, o gatilho que impulsiona os canceladores a destruírem todas as manifestações que lhe pareçam, ainda que impropriamente, ofensivas. E então está instaurado o caos. Observe o mecanismo: tudo começa por um comentário de alguém, que acaba ferindo o ego dos guardiões do politicamente correto (e nem precisa de muito pra conseguir essa façanha). Então, uma turba de canceladores surge e usam das mais diversas e cruéis artimanhas para destruir aquele que os ofendeu, que geralmente incluem esses passos: deturpar o que o cancelado efetivamente disse, aplicando uma ginástica interpretativa para fazer com que a fala dele pareça a coisa mais detestável da história; destruição de reputação e da carreira pretérita do cancelado, reduzindo tudo que ele já possa ter feito a nada, ou melhor, a uma fala ruim que gerou o cancelamento; destruição do futuro do cancelado, podendo inclusive chegar ao ponto de grupos exercerem pressão sobre o empregador deste para demiti-lo. E ainda outras coisas mais, do tipo que deixariam Robespierre orgulhoso.

E esse cancelamento tem sido cada vez mais cruel, e anote-se que absolutamente ninguém esta isento do risco de ser atacado. Vamos a alguns exemplos: o filósofo Roger Scruton, famoso por ser um dos mais proeminentes autores do conservadorismo britânico, sofreu um grande cancelamento em 1989 por suas posições “racistas”, apenas por ousar questionar os movimentos massivos de imigração que se dirigiam à Inglaterra naquela época. Nessa época, apesar de ainda não haver internet (ao menos não nas proporções atuais), a perseguição fora tamanha que forçou o filósofo a se demitir da Universidade em que lecionava na época e se afastar do ambiente acadêmico. Relatou:

“Após um episódio particularmente assustador em que fui perseguido depois de uma palestra pública na Universidade de York, e as subsequentes calúnias da BBC e do jornal The Observer, decidi deixar o mundo acadêmico e viver dos meus escritos.” (grifo nosso)

A célebre autora J. K. Rowling, mundialmente famosa por ter escrito uma das obras de ficção infanto-juvenis mais famosas dos últimos anos (a saga Harry Potter), também vem sendo alvo de sucessivos linchamentos virtuais por conta de falas supostamente transfóbicas, como por exemplo ao postar em sua página no Twitter:

Se sexo não é real, não existe atração entre pessoas do mesmo sexo. Se sexo não é real, a realidade vivida por mulheres ao redor do mundo é apagada. Conheço e amo pessoas trans, mas apagar o conceito de sexo remove a habilidade de muitos discutirem suas vidas de forma significativa. Não é ódio dizer a verdade”

Outro caso semelhante foi o do psicólogo cognitivo, linguista e escritor Steven Pinker, que foi alvo de uma carta assinada por outros linguistas e dirigida à Sociedade Americana de Linguística (LSA) pedindo a remoção do autor do quadro de autores prestigiados por falas supostamente racistas e preconceituosas — e analisando bem a obra do autor, é possível ver que tudo que ele tem feito é rebater, de forma fundamentada, algumas crenças difundidas sobre racismo e machismo.

De qualquer forma, em ambos os casos os padrões se repetem: aplicação de uma ginástica retórica para deturpar o que foi efetivamente dito, seguido de um linchamento moral e de uma perseguição profissional, além de um ataque sistemático à carreira e à obra pregressa dos cancelados.

Poderíamos citar alguns exemplos brasileiros também, e nestes gostaríamos de demonstrar um dado curioso: algumas pessoas, nesse gosto pelo cancelamento, se esquecem que o monstro do autoritarismo e do “proselitismo moral”, uma vez alimentado, não volta a vestir a coleira, e é capaz até de morder a mão que outrora o alimentara. Dois casos nos provam essa tese: Felipe Neto e Fernando Haddad.

O primeiro, produziu verdadeiros massacres de reputação durante o enfrentamento da pandemia da COVID-19 contra todos aqueles que ousassem cometer o crime de questionar as políticas de isolamento social em nome da retomada das atividades econômicas — o que têm se mostrado uma questão de sobrevivência para camadas mais pobres. Felipe Neto foi um cancelador voraz contra todos aqueles que estivessem “furando a quarentena”. E qual não foi sua surpresa ao circular nas redes um vídeo do mesmo jogando futebol, tendo inclusive relatos de que ele sempre estava jogando naquele mesmo campo durante a pandemia. E o resultado foi — quem diria? — seu cancelamento, cruel e rasteiro como ele próprio costumava conduzir.

Já o ex-presidenciável Fernando Haddad, igualmente voraz em cancelar diversas pessoas com posturas “racistas, machistas” e outros adjetivos atualmente na moda, foi pego de sobressalto por um cancelamento voraz contra si, em virtude de ter postado, em sua conta no Twitter, “Tem Casa Grande que vale a pena”, fala que foi recebida na web como racista. Os dois exemplos provam dois pontos aqui levantados: um, a crueldade e a sordidez do cancelamento; dois, a vida é uma caixinha de surpresas, e o cancelador de hoje pode ser o cancelado de amanhã.

A grave verdade é que o cancelamento é uma postura cruel e covarde, que destrói reputações sem sequer dar às suas vítimas o direito de defesa, ou mesmo o direito de, quando diante de um verdadeiro erro (e não mero “chilique” da turba), aprender com sua falha e melhorar como pessoa. Trata-se de um verdadeiro monstro, que foi alimentado no passado e que hoje se recusa a ser fiel a seus criadores, devorando qualquer um que magoe os “Cavaleiros do Politicamente Correto”, uma espécie de forma contemporânea, patética e caricata dos Cavaleiros da Távola Redonda.

E não nos enganemos: esse cancelamento, apesar de adquirir uma força hercúlea nas redes, não se limita a elas. Nas Universidades, por exemplo, teses liberais (em qualquer sentido que se queira dar à palavra) foram completamente banidas, e qualquer um que ouse defendê-las estará se arriscando a ser perseguido, difamado e desprezado — e, o que torna a história ainda mais bizarra, muitas vezes não só por seus colegas, mas também por seus professores.

Qualquer tipo de tese conservadora, religiosa ou tradicionalista também estará exposta aos mesmos riscos. A bem dizer, qualquer tese que não seja aplaudida pela “comunidade acadêmica” — e é sempre uma dificuldade entender que raios isso quer dizer — está arriscada a cancelamentos acadêmicos. E como enfrentar esse monstro? Mais do que nunca, precisamos cancelar o cancelamento: resistir às tentativas patéticas, não abaixar a cabeça e enfrentar os canceladores. Expor ao ridículo as táticas de cancelamento e seguir em frente, com coragem e coração aberto. Parece um futuro distópico, não? Um otimista diria “este é o melhor dos mundos”; um pessimista o responderia “tenho medo de que você esteja certo”.

Referências

Vídeo: A cultura do cancelamento na internet — Luiz Felipe Pondé. Acesso em: <https://www.youtube.com/watch?v=_nBxXm5viQQ>.

Vídeo: A raiz do politicamente correto — Café Filosófico CPFL. Acesso em: <https://www.youtube.com/watch?v=wHkpM5k88Ow>.

Vídeo: Geração Mimimi — Service Manager. Acesso em: <https://www.youtube.com/watch?v=BA-5VQ07sA4>.

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Tradução de Plínio Dentzien. Rio Janeiro: Zahar, 2003.

CATRACA LIVRE. Web acusa Haddad de ter feito post racista sobre o ‘caso Robinho’. Acesso em: <https://catracalivre.com.br/cidadania/web-acusa-haddad-de-ter-feito- post-racista-sobre-o-caso-robinho/>.

GZH MUNDO. Grupo associa Steven Pinker a racismo e sexismo e pede intervenção de sociedade de linguistas. Acesso em: <https://gauchazh.clicrbs.com.br/mundo/noticia/2020/07/grupo-associa-steven-pinker-a-racismo-e-sexismo-e-pede-intervencao-de-sociedade-de-linguistas-ckcdt16jk008101jabg344m4l.html>.

INSTITUTO LIBERAL. É preciso cancelar a cultura do cancelamento. Acesso em: <https://www.institutoliberal.org.br/blog/e-preciso-cancelar-a-cultura-do-cancelamento/>.

OMELETE. J. K. Rowling e transfobia: entenda a polêmica. Acesso em: <www.omelete.com.br/quadrinhos/j-k-rowling-transfobia-entenda-polemica#25>.

PONDÉ, Luiz Felipe. Sociologia do Mimimi, Folha de São Paulo: 04/04/2016. Acesso em: <https://www1.folha.uol.com.br/colunas/luizfelipeponde/2016/04/1757087-sociologia-do-mimimi.shtml>.

SCRUTON, Roger. Como ser um Conservador. Tradução de Bruno Garschagen. Rio de Janeiro: Record, 2015.

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Grupo de Cultura e Extensão da FEA-RP/USP voltado ao estudo e promoção das ideias do liberalismo na Academia.