Direito Penal e a proteção à Liberdade

Clube Caiapós
8 min readFeb 24, 2021

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Autoria: Lucas de Carvalho Franco

Photo by Tingey Injury Law Firm on Unsplash

Penso que o direito penal deve garantir os pressupostos de uma convivência pacífica, livre e igualitária entre os homens, na medida em que isso não seja possível através de outras medidas de controle sócio-políticas menos gravosas. Esta frase foi escrita por um dos maiores estudiosos de Direito Penal, e provavelmente o maior vivo: Claus Roxin. Jurista alemão, Roxin possui 17 doutorados honorários, conferidos por diversas universidades; e, com certeza, não sem mérito. O dogmático é extensamente lido e estudado — para admirar ou para criticar, ambas posturas absolutamente normais no campo das Ciências Jurídicas — por suas inúmeras contribuições para a dogmática penalista.

“Por que estamos falando dele? Isso não é um artigo sobre liberdades?” alguém poderia perguntar. Acontece que Roxin foi, e ainda é, um dos maiores defensores da liberdade no âmbito político-criminal, verdadeiro marco em suas contribuições no sentido de que não pode o Estado querer punir criminalmente qualquer postura, a menos que pretenda ser uma ditadura travestida de democracia. Falar sobre Roxin é, portanto, falar do Direito Penal numa função muitas vezes negligenciada, e que, quando nela se fala, se fazem críticas vorazes — geralmente imerecidas: a função garantidora do Direito Penal.

Cumpre uma anotação, antes. Não estamos aqui a falar daquele garantismo irresponsável, excessivamente “bonzinho” com o criminoso, que é rápido em absolver e vagaroso em condenar. Não é que a lei penal se preste a “proteger vagabundo”, como alguns dizem de forma bastante chula, mesmo que seja verdade que algumas leis, na prática, sejam dignas de críticas por serem realmente muito brandas. O que precisamos entender é que o Direito Penal, aquele conjunto sistemático de princípios e regras que protegem alguns bens tidos como essenciais para uma sociedade, não deve ser arbitrário.

Deixando um pouco o juridiquês de lado, vamos entender, em bom português, alguns termos importantes. Poucas linhas acima falamos de um conceito completamente central no Direito Penal, que é o de bens jurídicos. Bens jurídicos são, na boa lição do Ilustre Rogério Greco, bens extremamente valiosos, não economicamente (pelo menos não só), mas politicamente, e que não podem ser devidamente protegidos por outros ramos, como o Direito Contratual, por exemplo.

Pensemos no bem jurídico por excelência: a vida. A vida é um bem que obviamente é extremamente valioso; mas não dá pra quantificar, economicamente, quanto vale uma vida (e quem tentar, é como quem não gosta de samba, na letra de Dorival Caymmi: bom sujeito não é). Seria razoável pensarmos em transformar os atos contra a vida, como o homicídio, em meras infrações civis, do mesmo tipo que deixar de pagar por um serviço qualquer? Do tipo que basta pagar uma indenização e pronto, estamos resolvidos? Claro que não!

Outros bens jurídicos que poderíamos citar nesta mesma ordem seriam a propriedade privada, a liberdade, a ordem econômica, etc. Justamente porque não dá pra proteger esses bens de forma branda, só indenizatória, é que se opta por fazer com que eles sejam, além de geralmente infrações civis , também crimes (aliás, está aí outra anotação importante: por mais que muita gente use o termo “crime” pra falar de qualquer violação a lei, crime tecnicamente falando só vale para violação à lei penal; se estivermos falando de lei civil, tributária, etc., o termo seria ilícito civil, tributário, etc). É importante lembrar que essa opção é sempre política, feita pelos legisladores quando editam uma lei penal, e que varia conforme a sociedade e o tempo.

E qual a importância disso para nosso tema principal (a defesa das liberdades)? É aqui que a coisa começa a ficar interessante. Agora que sabemos o que é um bem jurídico, é importante entender um dos princípios mais importantes do Direito Penal, e que está totalmente ligado a ideia de bem jurídico e a função garantidora do Direito Penal: o princípio da intervenção mínima. É afirmar: o Direito Penal é ultima ratio, isto é, a norma penal deve ser a última ferramenta com a qual se protege um bem jurídico. Apenas quando não houver nenhuma outra forma de proteger aquele bem é que deverá o Direito Penal intervir na vida em sociedade.

É que as punições do Direito Civil, por exemplo, são menos rigorosas: perder um bem por penhora, ser condenado a pagar uma quantia a título de multa por perdas e danos, tudo isso é bem menos agressivo que perder sua liberdade. Até porque o Judiciário pode errar (não que possa, em tese, mas acontece eventualmente). E se errar, é fácil determinar a devolução de bens ou a restituição de algum valor pago injustamente; mas como reparar os danos sofridos por alguém que foi preso injustamente? Quanto vale a liberdade de alguém, pra ser indenizada caso alguém a perca indevidamente?

Perceba que não há respostas fáceis para essas perguntas. E justamente por esse motivo é que a intervenção penal deve ser sempre subsidiária (isto é, essa ideia de que se a agressão puder ser reparada só com indenização civil, que assim seja) e sempre de forma muito cautelosa — o que só muito canalhamente pode ser usado como sinônimo para “passar a mão na cabeça de bandido”. Quer dizer, cabe ao legislador punir criminalmente apenas as condutas que agridam diretamente bens jurídicos muito relevantes; e ao Judiciário conduzir o julgamento de forma cautelosa e garantindo todos os direitos de defesa para o réu, sem qualquer ânimo de protegê-lo, mas de garantir que os culpados sejam punidos com todo o rigor da lei, e os inocentes absolvidos prontamente.

Agora, lembremo-nos daquele simpático velhinho mencionado no começo deste artigo, o Doutor Roxin. O motivo pelo qual dissemos que ele é um dos maiores defensores da liberdade em política-criminal é por conta de algumas contribuições específicas que ele deu para o estudo do Direito Penal. Roxin faz parte de um movimento que surgiu na Alemanha e que hoje é conhecido como Escola Funcionalista Alemã, sendo que ele faz parte da chamada Ala Moderada do movimento.

Roxin desenvolveu uma teoria extremamente interessante e paradigmática: a Teoria da Imputação Objetiva. Para o autor, toda conduta que não gere um risco proibido deverá ser irrelevante para o Direito Penal. O que seria esse risco proibido? Vamos nos valer de um exemplo para compreender, que aliás é o exemplo utilizado pelo autor em sua obra: um sobrinho queria ver seu tio, lenhador, morto. Para isso, ele o manda para uma floresta, e enquanto o tio está vagueando por ela, o sobrinho começa a torcer ansiosamente para que um raio caia sobre e o mate.

Seria possível punir este sobrinho por tentativa de homicídio? A conclusão a que Roxin chega beira a obviedade: não! Não importa muito o que o mais novo queria, por mais reprovável que seja seu desejo, e por mais ardoroso que estivesse em seu sentimento, o fato é que o garoto não fez nada direcionado a matar seu tio. E o fato de tê-lo mandado para uma floresta? Bem, sem dúvidas a vontade do sobrinho era que viesse um raio fulminante dos céus e acabasse com a vida de seu parente. Isso pode até ser moralmente reprovável, mas mandar o tio ir a uma floresta não é nada proibido ou mesmo indesejável, na verdade no exemplo seria até habitual, posta a profissão do tio.

O que Roxin tenta nos ensinar é que o Direito Penal, sendo ele tão agressivo a ponto de ser o único ramo do Direito a afetar um dos bens mais valiosos ao ser humano (sua liberdade), e sendo também ultima ratio na proteção de bens jurídicos, não pode se ocupar de punir condutas que, ainda que moralmente questionáveis, não são proibidas, ou mesmo que sejam mas que não geram nem resultado nem risco algum a ninguém. O risco proibido é aquele risco que, em outras palavras, é permitido. E todo risco que, ainda que ilegal, possa ser reparado pelo Direito Civil, por exemplo, deverá ser considerado permitido para fins do Direito Penal.

Qual a conclusão que podemos tirar desta salada de conceitos jurídico-penais? A partir dela, vamos lançar luz à dois acontecimentos diversos mas que ainda estão frescos na memória dos brasileiros por terem acontecido há pouco tempo: não há muito tempo, o jornalista Hélio Schwartsman publicou, no jornal Folha de São Paulo, um artigo intitulado “Por que torço para que Bolsonaro morra”. E, ainda mais recentemente, o deputado federal Daniel Silveira foi preso por ordens do Supremo Tribunal Federal (no malfadado e criticado “inquérito das fake news”) por ter dito meia dúzia de abobrinhas e impropérios contra ministros do Supremo e contra a ordem democrática, exaltando períodos e atos ditatoriais da história brasileira.

Esses dois eventos aconteceram de formas diferentes e afetaram pessoas diferentes, mas há uma intersecção entre eles importante para nós: ambas as condutas deveriam ser, à luz do princípio da intervenção mínima e da Teoria da Imputação Objetiva, penalmente irrelevantes. Isto mesmo, deveriam ser desprezadas pelo Direito Penal. “Mas foi um absurdo o que o jornalista escreveu sobre o Presidente”. Ok. “E foi absurda a fala do Deputado contra os Ministros”. Ok também. Perceba que em nenhum dos dois casos estamos emitindo juízos de valor sobre as condutas: algumas pessoas podem concordar, outras podem discordar. Faz parte do jogo. O grande ponto é que as duas envolvem manifestações de algo caríssimo a qualquer defensor da liberdade, que é a liberdade de expressão. E se é verdade que o limite da liberdade de expressão é a lei — e há bons motivos para questionar essa tese, mas vamos tomá-la como verdadeira porque só esse questionamento poderia dar outro artigo -, as duas condutas são legais, ao menos para o Direito Penal.

Porque Hélio Schwartsman desejou a morte de Bolsonaro, ele irá morrer? E porque o deputado disse barbaridades contra os Ministros, essas barbaridades irão se manifestar no plano da realidade? Não. Por mais odiosas e desprezíveis que sejam as duas manifestações — e creio pessoalmente que ambas são totalmente desprezíveis -, nenhuma das duas é apta a questionar a liberdade de seus autores por meio do Direito Penal. Se seja lá quem for se sentiu lesado ou caluniado ou difamado, que leve seus problemas ao Juízo Civil pedindo reparação — e convenhamos que em ambos os casos uma boa indenização, se muito, resolveria totalmente o problema; e se alguém se sentiu magoado, seria caso talvez de uma terapia, quem sabe uma conversa com um líder religioso ou algo assim. Agora, alguém poder ser preso por qualquer uma dessas manifestações? Isso beira o absurdo, feito aos arrepios da boa dogmática penal (e aliás, não é de chamar atenção que somente o deputado tenha sido punido?)

De uma forma ou de outra, a conclusão é a mesma: a lei penal existe, e existe para ser cumprida nos casos em que houver de ser cumprida: quando for a última possibilidade de proteger bem jurídico e quando houver a criação e a efetivação de um risco proibido pela política criminal. Não sendo nenhum desses casos, deve prevalecer a liberdade. De expressão e de não ser preso injustamente. Essa é a função garantidora do Direito Penal. Viu como isso tem tudo a ver com defender a liberdade?

Referências:

Rogério GRECO. Curso de Direito Penal: Parte Geral, volume I, 6ª ed.

Cezar BITENCOURT. Tratado de Direito Penal: Parte Geral, volume I, 26ª ed.

Claus ROXIN. Estudos de Direito Penal. Trad. Luís Greco. 2ª ed.

Davi TANGERINO; Octavio ORZARI. Bolsonaro para Roxin: hold my beer. Artigo em <https://www.conjur.com.br/2020-jul-09/direito-transe-bolsonaro-roxin-hold-my-beer#_ftnref2>. Publicado em 09 jul. 2020

Hélio SCHWARTSMAN. Por que torço para que Bolsonaro morra. Artigo publicado na Folha de São Paulo, em 7 de julho de 2020.

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Grupo de Cultura e Extensão da FEA-RP/USP voltado ao estudo e promoção das ideias do liberalismo na Academia.